A
INQUIETA POÉTICA DE A DANÇA DO TEMPO
MARCUS
VINICIUS QUIROGA
Os
textos de A DANÇA DO TEMPO nos chamaram a atenção, entre outras coisas, pelas
inúmeras referências à própria criação dos poemas. Feita outra leitura,
detectamos que em 75% da obra aparece pelo menos uma das seguintes palavras:
poeta, poema, palavra, verso, rima, escrever, sentido, significado, livro,
cantiga, canto, trovador, lírico, frase, imagem, metáfora, enredo papéis,
linguagem, rabisco, alegoria. Ou seja, há a reincidência de um vocabulário
pertinente ao ato da criação literária.
Curiosamente,
a poesia não é o tema maior deste livro, como tal levantamento poderia sugerir,
mas o tempo, como o título elucida. Não se trata, portanto, de um livro
metalinguístico, por excelência, ainda que recomendemos a leitura de Curriculum
Vitae, Aos Trancos e Barrancos, Versos Libertários e Ode Aos Poetas, peças
fundamentais para o entendimento da poética de Naldo Velho.
A
poesia se encontra de tal modo entranhada em sua existência que, mais do que
uma temática privilegiada, é a materialização da própria vida. O autor não se
propõe a oferecer “poemas mansos”, porque seu olhar não é manso e muitos poemas
têm motivação autobiográfica, ainda que elaborados esteticamente.
Poesia
e vida se confundem em uma voz bastante pessoal, cuja evidente inquietação
existencial ocorre na mescla de dicções, na violência das imagens, na
enumeração de palavras e no ritmo dramático da enunciação. Observamos que esta
linguagem vigorosa se superpõe a uma poesia de visão romântica, como a que
ainda ocorre nos poemas lírico-existenciais, patenteando um outro momento criativo
do poeta. As reflexões sobre a efemeridade e ação do tempo predominam,
colocando em cena a insensatez da vida, que é de certa forma uma das
características de todo poeta. A DANÇA DO TEMPO é exatamente um livro contra
esta sensatez, este senso comum que aprisiona a palavra e o homem, por isso em
Poema Corpo, é dito que palavras precisam ser libertárias, abrir comportas, derrubar
paredes, derramar as histórias e desfazer os nós de cada um de nós.
A
leitura destes poemas exige fôlego, tal a força de sua linguagem metafórica,
através da qual há um pensar angustiado sobre o mundo em pleno movimento.
Escrever evidencia-se vital para Naldo Velho, porque o poeta sabe que sua
palavra é coisa viva, que tanto não se acomoda literariamente em formas
pré-estabelecidas, quanto não se limita existencialmente a padrões de
pensamentos. Neste livro não importa o som final de cada verso, uma vez que ele
sempre rima com inquietude e libertação.
UMA
CANÇÃO DESESPERADA
Ou
A
POESIA DA SOLIDÃO E DA SOLIDARIEDADE
TANUSSI
CARDOSO
Poeta
e jornalista.
Presidente
do Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro (SEERJ)
Nos
primeiros versos de “Curriculum Vitae”, que abre seu mais recente livro, “A
DANÇA DO TEMPO”, Naldo Velho já indica o que pretende: causar inquietude, dar a
cara à tapa, mostrar-se sem subterfúgios, em versos quase sempre caudalosos:
“Eu tenho mestrado em inquietude / com tese defendida nas esquinas desta vida,
/ pós-graduado em bares que funcionem / no intestino da cidade, / em vez por
outra tropeçar e cair da merda do meio fio, / em dormir bêbado em recantos que
sejam sombrios, / em buscar em meio aos escombros / versos que causem arrepio,
(...).
Inquietude,
nunca calmaria, que a isso não se permite o poeta. Seus poemas querem
desnortear, mais que nortear; alvoroço invés de paz; libertar as amarras e não
prender sensações. Porque o que se lerá nesse livro é pura emoção, não aquela
gratuita, a de quem chora seus umbigos sem qualquer pudor, mas a que está sob a
pele, a que dói no estômago como um soco, a que se encontra no mais íntimo de
seus tremores e temores. Uma emoção que salta das entranhas e coloca-se de
forma seca, enxuta, corroída em seus versos crus, numa dor que nos é universal.
Naldo sabe o que é fazer poesia lírica e emotiva sem ser um charlatão das
lágrimas construídas. Afinal, é o poeta quem afirma: “Portanto não peçam poemas
mansos, / só sei caminhar aos trancos e barrancos.” (“Aos Trancos e
Barrancos”), porque... “Do lado de cá mora um poeta, / águas revoltas,
estranhas, inquietas.” (“Do Lado de Lá”)
“A
DANÇA DO TEMPO” – e o Tempo fez muito bem ao escritor – traz uma voz
contundente, sofrida e carismática. A impressão que se tem é de que, de maneira
corajosa, Naldo Velho resolveu, definitivamente, exorcizar os seus fantasmas,
num livro de extremo rigor estético, musical e poético, onde o mote principal
são a espiritualidade e a crença – sempre possível – num homem ressurgido das
trevas (o próprio poeta?), num Tempo Novo de Amor e de Energia Vital. Essa “Dança”
do Tempo, para ele, é a reconstrução da própria Vida. Assim, a solidão (e é a
solidão do homem moderno) passa a ser a palavra central, tecida nesse imenso
livro de poemas, que tem o Tempo como motivação.
Divergindo
de uma literatura poética, que um segmento crítico resolveu aplaudir, em que a
técnica e a frieza verbal não dão lugar ao emocional, onde o poeta esconde a
sua persona em jogos semânticos, muitas vezes sem qualquer sentido, a poesia de
Naldo Velho é exuberante, fazendo com que os sentimentos mais profundos jorrem
diretamente ao coração do leitor, tocando-o com seus versos – o verdadeiro
“religare” – sem desprezar a técnica e a forma, e sem se preocupar com modismos
nem gratuidades tolas, não menosprezando a inteligência e a sensibilidade de
quem o lê.
Naldo
alcança o que tantos perseguem e nunca conseguem: um estilo próprio. Pois, em
“A DANÇA DO TEMPO”, encontramos, com prazer, o estilo “naldovelho” de fazer
poesia: um lirismo pontiagudo, perverso, cruel, erótico, sensual, extrovertido,
e, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, intimista, suave, musical, doce –
apaixonado e apaixonante – comovente! Em seu novo livro, o poeta, em sua
madureza, consegue timbres e dicções só seus, executados e pensados
fluentemente. E, ao mesmo tempo em que se mostra se esconde, deixando ao leitor
descobrir a sua face verdadeira entre as muitas antíteses de seu fazer poético.
De
peito aberto, Naldo se entrega à Poesia - sangra. Chora as suas ausências e
perdas, e não se intimida em ser tomado como um romântico nostálgico, alguém
fora de hora e de ordem, com seus versos cheios de luas, musas e beijos
apaixonados. O poeta parece estar sempre em transe poético, esvaindo-se numa
pureza lírica, onde belas metáforas inibem a ironia, o humor e os rompantes
juvenis de certa poesia lida por aí. Fabrício Carpinejar, a respeito de Mário
Faustino, disse que ele “privilegiou a renovação do antigo mais do que a
inovação pela ruptura”, pois o mesmo pode-se afirmar de Naldo Velho.
Porém,
diferentemente do que se possa imaginar, Naldo não é um poeta que prima pelo
bom comportamento. Seu texto é embalado por versos que fogem ao convencional,
alimentado por palavras que se direcionam a certo padrão, digamos, gótico, de
nosso paladar poético. Assim, sua poesia é cercada de vocábulos como entranhas,
cicatrizes, amargura, insônia, inquietação, escombros, saudades, sombras,
noites, feridas, lágrimas, solidão, medo, madrugadas, loucura etc., alternando
em seus poemas símbolos religiosos ou místicos (peixes, serpentes, morte,
sangue, mistérios, Deus, silêncio, anjos, segredos, veneno, alma...),
conseguindo transformá-los em temas pessoais e atemporais, pois, como ele mesmo
diz, “palavras precisam caminhar” (“Poema Corpo”). Entretanto, a religiosidade
que aparece em alguns de seus versos é contrita, contida, uma espécie de oração
nem tanto ao céu nem tanto à Terra. É uma oração que duvida, que pergunta, e
que se responde na própria Poesia. Naldo Velho sabe muito bem equilibrar a estranheza
de seus versos lúgubres, com técnica perfeita, onde o ritmo certeiro, a dose
correta da emoção, a criatividade das metáforas, a força imagética contida na
alta voltagem das palavras, tantas vezes, pictóricas e musicais, as inúmeras
aliterações, assonâncias, numerações e demais jogos sonoros, indicam a
qualidade do que é ser um poeta. Quase
todas as questões expostas em “A DANÇA DO TEMPO” transmitem uma grande agonia,
um grande sofrimento, acentuadas pelo rico emprego das anáforas
(impressionantemente presentes em quase todos os poemas do livro), afastando-se
de sentimentalismos pueris, mas gratificantemente líricos, e ratificando a
visão da grande angústia com que pensa o mundo.
Naldo
Velho constrói em sua obra a poesia da vida e da liberdade: o Tempo da memória,
o Tempo da saudade, o Tempo do que deixou de ser feito, o Tempo a ser vivido, o
Tempo do Amor (angustiado, incompleto, desalentado, louco), o Tempo da
infância, da velhice e da morte. Um ciclo inevitável, e, por isso mesmo, tão
poético. O Tempo, para ele, é uma espécie de estigma. Há a urgência do querer
fazer, do realizar, do realizar-se. Como se a Morte espreitasse em cada
esquina, daí a necessidade irresistível e plena de utilizar o seu tempo em algo
que lhe seja útil, “antes que o dia amanheça”, “antes que a fruta apodreça”,
“antes que o meu tempo se acabe” (“E o Anjos Riem de Mim”).
O
poeta torna-se um observador atento das coisas cotidianas: olhar perscrutador,
ao mesmo tempo espantado, ao mesmo tempo carinhoso, repleto de dor e amor,
filosofando sobre questões existenciais. Pergunta, indaga, mas,
inteligentemente, em momento algum, é juiz dos acontecimentos. Seus poemas
revelam consistência e grandeza humanas já que falam, basicamente, de
experiências e aprendizagens de vida. Sem subterfúgios, sem pressa, labora e
sente, já que para ele viver é o grande poema.
Como
numa “canção desesperada”, Naldo Velho, neste livro, se apresenta como um poeta
triste, de alma atormentada, dilacerada, fragmentada (Não é à toa que a palavra
“escombro” aparece em vários de seus versos). Um ser em busca de si mesmo, de
sua identidade – de seu caminho – de sua verdade e de seu estar na vida. Um ser
em busca do Tempo. Um Tempo que, através do poema, se revê e se projeta em
algum futuro possível. Um Tempo que o poeta precisa “para terminar de viver”,
para “libertar a pessoa que eu sempre quis ser” (“Há um Tempo”). Assim, com
linguagem própria, Naldo Velho busca um sentido para as coisas do mundo, da
vida - o elo perdido entre solidão e solidariedade.
Walter
Benjamin viu na poesia uma modalidade específica de autoconhecimento. “A DANÇA
DO TEMPO” confirma a teoria de que a boa Poesia é a arte da construção, do
ver-se e do desnudar-se, numa busca perene e constante do encontrar-se a si
mesmo. “A DANÇA DO TEMPO” é o livro da
procura e do encontro. Que o leitor acolha sua poesia com a mesma generosidade
com que lhe é ofertada.