segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A DANÇA DO TEMPO QUARTA PARTE

A PEDRA E O LIMO
Naldo Velho

Ruas, travessas, esquinas, o carro que passa,
o som da buzina, já faz tanto tempo,
dá cá um abraço, um aperto de mão.

No sobrado ao lado, alguém acena...
Muro de pedras cheias de limo.
Algumas casas mudaram, já não são as mesmas,
as pessoas também não!

O Bar do Armando agora é um depósito,
a quitanda virou sacolão, e o armazém: oficina.
Tudo mudado!

Eu também mudei, já não moro mais aqui,
já não tenho vinte anos, não me restam tantos planos
e na possibilidade do engano,
não quero me transformar num depósito.

Melhor virar oficina, vivo me ajustando...
Recondiciono-me para sobreviver às avarias.

Incomoda-me a proximidade da pedra,
assusta-me a possibilidade do limo.



DIAS DE CALMARIA
Naldo Velho

Aos poetas, a palavra e seus significados,
para que possam desconstruir o tempo,
dissolver coisas cristalizadas,
revelar segredos, tecer enredos
como quem constrói uma teia.

O poeta é como uma aranha, sutil artimanha,
a devorar o verbo em suas entranhas,
para depois vomitá-lo poema...
Natureza de um tolo,
prisioneiro de sua imensidão.

Sobrou, então, o silêncio
das noites choradas pra dentro,
dos dias de calmaria, faz tempo...
Inquietude que não vai embora,
e eu nem sei explicar o porquê!



RAZÃO E LOUCURA
Naldo Velho

Uma pirueta na beira do abismo,
um beijo molhado de mel e veneno.
Outra pirueta, um salto mortal.
Salgado é o bico, suor em teus seios.
Uma corda estendida... Sou equilibrista...
Não balança o arame se não eu caio.
Quem tirou a rede que devia me proteger?

Agora o trapézio, ainda existe o abismo,
e o veneno que brota, do teu corpo molhado,
se eu bebo depressa me embriago,
meio trôpego escorrego, tropeço e caio,
agarro-me em frestas, escarpas, escamas.
O que será que este peixe veio fazer por aqui?

Quem sabe no fundo do abismo que eu ouso
exista um lago pra matar minha sede?
Quem sabe este lago seja de águas tranquilas?
Quem sabe este corpo que oscila enroscado ao meu corpo,
seja a razão e a loucura que eu tanto preciso.



QUANDO ALONGO OLHOS
Naldo Velho

Quando alongo olhos de horizonte,
percebo a pequenez da palavra pavio,
a complexidade do emaranhado de fios,
a amplitude das coisas sem dono
e a insensatez de vivermos com pressa.

Quando alongo olhos de cidade,
percebo a pequenez da palavra distância,
a complexidade da palavra conversa,
a frustração de acordar de um sonho
e descobrir que somos apenas humanos.

Quando alongo olhos de permanecer,
percebo a pequenez da palavra descrença,
a complexidade do ciclo das águas,
a “infinitude” da palavra caminho,
e reconheço que ainda há muito a aprender.



E OS ANJOS RIEM DE MIM
Naldo Velho

Antes que o dia amanheça
e a luz do sol apareça,
preciso abrir as janelas,
expulsar do quarto os demônios,
quebrar vidraças e espelhos,
destruir mapas e planos,
perder o rumo outra vez.

Antes que a fruta apodreça
e os pássaros abandonem seus ninhos,
preciso cometer sacrilégios
em versos que falem o absurdo
de ruas manchadas de sangue,
e orar por este povo sofrido
que cego não enxerga o seu fim.

Antes que o meu tempo se acabe,
e o teto que me protege desabe,
preciso quebrar o silêncio,
alquimizar em mim o veneno,
poder socorrer meus irmãos,
mas ninguém lê meus poemas,
e os anjos riem de mim.



TRAGICOMÉDIA
Naldo Velho

Estreitas passagens impedem a viagem,
retardam o regresso do pecador, confesso,
que envolto em chamas busca e clama
pela misericórdia do perdão.
Promete reformas, se empenha e ora
e diz que agora vai ser diferente.

Enroscada num canto a serpente observa,
sibila satisfeita, sorri de prazer.
É muito o veneno que ainda existe em seu ser.

A plateia entretida assiste ao espetáculo,
querubins pervertidos, excitados pedem bis.
Estranho personagem que em insólita viagem,
rasteja pelo palco, comete bobagens,
embriaga-se do veneno, interpreta um selvagem
e iludido pelo aplauso se diz um aprendiz.

Na coxia, excitado, um arcanjo safado ri do infeliz.

São muitas as teias, são muitos os dramas,
coadjuvantes reclamam melhor papel nessa trama
e revoltosos proclamam o fim do espetáculo.
A plateia silencia, não entende o enredo,
não percebe que a morte é a grande atriz.

E o nosso personagem sai às pressas do teatro,
vai a busca de um outro palco onde possa ser feliz.



ENXERTOS
Naldo Velho

Tem dias que eu me sinto
enxertado de pássaros noturnos,
me ponho a sobrevoar lugares,
ruas suspeitas, travessas,
santuários estranhos, profanos,
protegidos por grades e muros,
becos sombrios escuros,
onde a angustia fez seu ninho, 
e a umidade nas coisas impera.

Tem dias que eu me sinto,
enxertado de lagartas, casulos,
ovos, larvas, borboletas,
a derramar sobre pedras meu sangue,
metamorfose de poeta em palavras,
escamas coloridas, sobrepostas,
imagens, significados, sutilezas,
por momentos iluminados, poemas,
pólen a fecundar minha vida.

Tem dias que eu me sinto
prenhe de vivências diversas,
histórias entrelaçadas, enredos,
e no parimento de mim mesmo,
exponho cicatrizes, segredos,
exorcizo fantasmas, meus medos,
construo um caminho seguro
que me permita levar luz ao escuro,
dar vazão à vida que existe em mim.



AOS TRANCOS E BARRANCOS
Naldo Velho

Minha poesia não é flor que se cheire,
tão pouco mel a adocicar suas vidas,
é erva ardida, espinho, arrepio,
tapeçaria desfeita, embaraçados os fios,
caminho escorregadio entre a rua e o meio-fio,
noite de lua inquieta, cidade tão fria e deserta,
janelas abertas, paixão, carinho, ternura,
e ao mesmo tempo tormenta,
embarcação à deriva, loucura.

Minha poesia é mistura de veneno e orvalho,
madrugadas trilhadas entre o pesadelo e o sonho,
é estação que anuncia sinal de partida,
abraço apertado, esperança, chegada,
é terra molhada das margens de um rio,
magia, feitiço, labirinto, pecado,
licença divina para cometer sacrilégios,
filha prematura entre o tempo e o verbo.

Minha poesia é maldição que carrego,
crença que tenho nas verdades que eu temo,
templo construído na beira do abismo,
sangue poluído, entupidas as veias,
cicatrizes que doem toda vez que me lembro...

Portanto não peçam poemas mansos,
só sei caminhar aos trancos e barrancos.



POEMA INACABADO
Naldo Velho

Louva-deus sentado na janela,
observa contrito o dia que passa.

Dentro do quarto, em cima da mesa:
pétalas, pensamentos, palavras, poemas.

Lá fora entardece, e um vento inquieto avisa:
logo-logo anoitece!

Pela janela: sol sonolento abençoa louva-deus.
Em cima da mesa: versos confessos, segredos, solidão.

Num canto do quarto, pendurada: renda portuguesa
diz que adora o poeta, que lhe tem devoção.

Agora é noite, luz da lua ilumina louva-deus.

Aqui dentro: poema inacabado,
onde palavras são pétalas, esboço de oração.



DO UMBIGO ATÉ O PESCOÇO
Naldo Velho

Pelos poros das paredes brotam gotas de orvalho,
pelas frestas da janela surgem luzes coloridas
que derramam no assoalho toda a seiva desta vida.

Pelas dobras pelos cantos, nascem lírios e begônias,
samambaias deitam águas e alimentam os gerânios.
e o colibri já fez seu ninho recheado dos meus sonhos.

Lá no teto envolta em teias a aranha observa
que entre as teclas do piano crescem ervas, cogumelos,
e o poeta alucinado, guardião dos desenganos.

Lua cheia quando lambe do umbigo até o pescoço,
faz o cabra ficar demente, vive de falar bobagens,
não mais consegue se aprumar.



É NO SILÊNCIO DA NOITE
Naldo Velho

É no silêncio da noite que eu trato as feridas,
cicatrizo cortes, curo fissuras, fraturas, entorses,
dissolvo nódulos, lágrimas cristalizadas,
palavras que teimam encravadas,
poemas abortados por conta da desilusão.

É no silêncio da noite que traço meu rumo,
derrubo muralhas, elimino excessos,
submeto vontades e venço minhas paixões...
Mas só as que entopem artérias e veias,
as outras, ainda que doam, delas não abro mão,
senão a vida fica vazia, tipo calmaria,
e eu, pedaço de pedra, cheio de limo,
nos fundos de um quintal sombrio chamado solidão.

É no silêncio da noite que eu percebo amplitudes,
realço os contornos, inquietudes, virtudes,
e atento aos contrastes reconheço meus erros,
desdigo besteiras, destruo meus medos, revelo segredos,
cerzidos meus panos dissipo a neblina,
e percebo o confronto entre o anjo e o diabo,
acesos os archotes da madrugada que chega,
amanheço refeito e dou fim à escuridão.

Lá fora, é setembro, e se bem me lembro,
finalzinho de inverno, pencas de azaleias,

prenúncio de uma nova estação!

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