A PEDRA E O LIMO
Naldo Velho
Ruas, travessas, esquinas, o
carro que passa,
o som da buzina, já faz tanto
tempo,
dá cá um abraço, um aperto de
mão.
No sobrado ao lado, alguém
acena...
Muro de pedras cheias de limo.
Algumas casas mudaram, já não são
as mesmas,
as pessoas também não!
O Bar do Armando agora é um
depósito,
a quitanda virou sacolão, e o
armazém: oficina.
Tudo mudado!
Eu também mudei, já não moro mais
aqui,
já não tenho vinte anos, não me
restam tantos planos
e na possibilidade do engano,
não quero me transformar num
depósito.
Melhor virar oficina, vivo me
ajustando...
Recondiciono-me para sobreviver
às avarias.
Incomoda-me a proximidade da
pedra,
assusta-me a possibilidade do
limo.
DIAS DE CALMARIA
Naldo Velho
Aos poetas, a palavra e seus
significados,
para que possam desconstruir o
tempo,
dissolver coisas cristalizadas,
revelar segredos, tecer enredos
como quem constrói uma teia.
O poeta é como uma aranha, sutil
artimanha,
a devorar o verbo em suas
entranhas,
para depois vomitá-lo poema...
Natureza de um tolo,
prisioneiro de sua imensidão.
Sobrou, então, o silêncio
das noites choradas pra dentro,
dos dias de calmaria, faz
tempo...
Inquietude que não vai embora,
e eu nem sei explicar o porquê!
RAZÃO E LOUCURA
Naldo Velho
Uma pirueta na beira do abismo,
um beijo molhado de mel e veneno.
Outra pirueta, um salto mortal.
Salgado é o bico, suor em teus
seios.
Uma corda estendida... Sou
equilibrista...
Não balança o arame se não eu
caio.
Quem tirou a rede que devia me
proteger?
Agora o trapézio, ainda existe o
abismo,
e o veneno que brota, do teu
corpo molhado,
se eu bebo depressa me embriago,
meio trôpego escorrego, tropeço e
caio,
agarro-me em frestas, escarpas,
escamas.
O que será que este peixe veio
fazer por aqui?
Quem sabe no fundo do abismo que
eu ouso
exista um lago pra matar minha
sede?
Quem sabe este lago seja de águas
tranquilas?
Quem sabe este corpo que oscila
enroscado ao meu corpo,
seja a razão e a loucura que eu
tanto preciso.
QUANDO ALONGO OLHOS
Naldo Velho
Quando alongo olhos de horizonte,
percebo a pequenez da palavra
pavio,
a complexidade do emaranhado de
fios,
a amplitude das coisas sem dono
e a insensatez de vivermos com
pressa.
Quando alongo olhos de cidade,
percebo a pequenez da palavra
distância,
a complexidade da palavra
conversa,
a frustração de acordar de um
sonho
e descobrir que somos apenas
humanos.
Quando alongo olhos de
permanecer,
percebo a pequenez da palavra
descrença,
a complexidade do ciclo das
águas,
a “infinitude” da palavra
caminho,
e reconheço que ainda há muito a
aprender.
E OS ANJOS RIEM DE MIM
Naldo Velho
Antes que o dia amanheça
e a luz do sol apareça,
preciso abrir as janelas,
expulsar do quarto os demônios,
quebrar vidraças e espelhos,
destruir mapas e planos,
perder o rumo outra vez.
Antes que a fruta apodreça
e os pássaros abandonem seus
ninhos,
preciso cometer sacrilégios
em versos que falem o absurdo
de ruas manchadas de sangue,
e orar por este povo sofrido
que cego não enxerga o seu fim.
Antes que o meu tempo se acabe,
e o teto que me protege desabe,
preciso quebrar o silêncio,
alquimizar em mim o veneno,
poder socorrer meus irmãos,
mas ninguém lê meus poemas,
e os anjos riem de mim.
TRAGICOMÉDIA
Naldo Velho
Estreitas passagens impedem a
viagem,
retardam o regresso do pecador,
confesso,
que envolto em chamas busca e
clama
pela misericórdia do perdão.
Promete reformas, se empenha e
ora
e diz que agora vai ser
diferente.
Enroscada num canto a serpente
observa,
sibila satisfeita, sorri de
prazer.
É muito o veneno que ainda existe
em seu ser.
A plateia entretida assiste ao
espetáculo,
querubins pervertidos, excitados
pedem bis.
Estranho personagem que em
insólita viagem,
rasteja pelo palco, comete
bobagens,
embriaga-se do veneno, interpreta
um selvagem
e iludido pelo aplauso se diz um
aprendiz.
Na coxia, excitado, um arcanjo
safado ri do infeliz.
São muitas as teias, são muitos
os dramas,
coadjuvantes reclamam melhor
papel nessa trama
e revoltosos proclamam o fim do
espetáculo.
A plateia silencia, não entende o
enredo,
não percebe que a morte é a
grande atriz.
E o nosso personagem sai às
pressas do teatro,
vai a busca de um outro palco
onde possa ser feliz.
ENXERTOS
Naldo Velho
Tem dias que eu me sinto
enxertado de pássaros noturnos,
me ponho a sobrevoar lugares,
ruas suspeitas, travessas,
santuários estranhos, profanos,
protegidos por grades e muros,
becos sombrios escuros,
onde a angustia fez seu
ninho,
e a umidade nas coisas impera.
Tem dias que eu me sinto,
enxertado de lagartas, casulos,
ovos, larvas, borboletas,
a derramar sobre pedras meu
sangue,
metamorfose de poeta em palavras,
escamas coloridas, sobrepostas,
imagens, significados, sutilezas,
por momentos iluminados, poemas,
pólen a fecundar minha vida.
Tem dias que eu me sinto
prenhe de vivências diversas,
histórias entrelaçadas, enredos,
e no parimento de mim mesmo,
exponho cicatrizes, segredos,
exorcizo fantasmas, meus medos,
construo um caminho seguro
que me permita levar luz ao
escuro,
dar vazão à vida que existe em mim.
AOS TRANCOS E BARRANCOS
Naldo Velho
Minha poesia não é flor que se
cheire,
tão pouco mel a adocicar suas
vidas,
é erva ardida, espinho, arrepio,
tapeçaria desfeita, embaraçados
os fios,
caminho escorregadio entre a rua
e o meio-fio,
noite de lua inquieta, cidade tão
fria e deserta,
janelas abertas, paixão, carinho,
ternura,
e ao mesmo tempo tormenta,
embarcação à deriva, loucura.
Minha poesia é mistura de veneno
e orvalho,
madrugadas trilhadas entre o
pesadelo e o sonho,
é estação que anuncia sinal de
partida,
abraço apertado, esperança,
chegada,
é terra molhada das margens de um
rio,
magia, feitiço, labirinto,
pecado,
licença divina para cometer
sacrilégios,
filha prematura entre o tempo e o
verbo.
Minha poesia é maldição que
carrego,
crença que tenho nas verdades que
eu temo,
templo construído na beira do
abismo,
sangue poluído, entupidas as
veias,
cicatrizes que doem toda vez que
me lembro...
Portanto não peçam poemas mansos,
só sei caminhar aos trancos e
barrancos.
POEMA INACABADO
Naldo Velho
Louva-deus sentado na janela,
observa contrito o dia que passa.
Dentro do quarto, em cima da
mesa:
pétalas, pensamentos, palavras,
poemas.
Lá fora entardece, e um vento
inquieto avisa:
logo-logo anoitece!
Pela janela: sol sonolento
abençoa louva-deus.
Em cima da mesa: versos
confessos, segredos, solidão.
Num canto do quarto, pendurada:
renda portuguesa
diz que adora o poeta, que lhe
tem devoção.
Agora é noite, luz da lua ilumina
louva-deus.
Aqui dentro: poema inacabado,
onde palavras são pétalas, esboço
de oração.
DO UMBIGO ATÉ O PESCOÇO
Naldo Velho
Pelos poros das paredes brotam
gotas de orvalho,
pelas frestas da janela surgem
luzes coloridas
que derramam no assoalho toda a
seiva desta vida.
Pelas dobras pelos cantos, nascem
lírios e begônias,
samambaias deitam águas e
alimentam os gerânios.
e o colibri já fez seu ninho
recheado dos meus sonhos.
Lá no teto envolta em teias a
aranha observa
que entre as teclas do piano
crescem ervas, cogumelos,
e o poeta alucinado, guardião dos
desenganos.
Lua cheia quando lambe do umbigo
até o pescoço,
faz o cabra ficar demente, vive
de falar bobagens,
não mais consegue se aprumar.
É NO SILÊNCIO DA NOITE
Naldo Velho
É no silêncio da noite que eu
trato as feridas,
cicatrizo cortes, curo fissuras,
fraturas, entorses,
dissolvo nódulos, lágrimas
cristalizadas,
palavras que teimam encravadas,
poemas abortados por conta da
desilusão.
É no silêncio da noite que traço
meu rumo,
derrubo muralhas, elimino
excessos,
submeto vontades e venço minhas
paixões...
Mas só as que entopem artérias e
veias,
as outras, ainda que doam, delas
não abro mão,
senão a vida fica vazia, tipo
calmaria,
e eu, pedaço de pedra, cheio de
limo,
nos fundos de um quintal sombrio
chamado solidão.
É no silêncio da noite que eu
percebo amplitudes,
realço os contornos, inquietudes,
virtudes,
e atento aos contrastes reconheço
meus erros,
desdigo besteiras, destruo meus
medos, revelo segredos,
cerzidos meus panos dissipo a
neblina,
e percebo o confronto entre o
anjo e o diabo,
acesos os archotes da madrugada
que chega,
amanheço refeito e dou fim à
escuridão.
Lá fora, é setembro, e se bem me
lembro,
finalzinho de inverno, pencas de
azaleias,
prenúncio de uma nova estação!
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