segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A DANÇA DO TEMPO - PREFÁCIO E RESENHA


A INQUIETA POÉTICA DE A DANÇA DO TEMPO

MARCUS VINICIUS QUIROGA


Os textos de A DANÇA DO TEMPO nos chamaram a atenção, entre outras coisas, pelas inúmeras referências à própria criação dos poemas. Feita outra leitura, detectamos que em 75% da obra aparece pelo menos uma das seguintes palavras: poeta, poema, palavra, verso, rima, escrever, sentido, significado, livro, cantiga, canto, trovador, lírico, frase, imagem, metáfora, enredo papéis, linguagem, rabisco, alegoria. Ou seja, há a reincidência de um vocabulário pertinente ao ato da criação literária.

Curiosamente, a poesia não é o tema maior deste livro, como tal levantamento poderia sugerir, mas o tempo, como o título elucida. Não se trata, portanto, de um livro metalinguístico, por excelência, ainda que recomendemos a leitura de Curriculum Vitae, Aos Trancos e Barrancos, Versos Libertários e Ode Aos Poetas, peças fundamentais para o entendimento da poética de Naldo Velho.

A poesia se encontra de tal modo entranhada em sua existência que, mais do que uma temática privilegiada, é a materialização da própria vida. O autor não se propõe a oferecer “poemas mansos”, porque seu olhar não é manso e muitos poemas têm motivação autobiográfica, ainda que elaborados esteticamente.

Poesia e vida se confundem em uma voz bastante pessoal, cuja evidente inquietação existencial ocorre na mescla de dicções, na violência das imagens, na enumeração de palavras e no ritmo dramático da enunciação. Observamos que esta linguagem vigorosa se superpõe a uma poesia de visão romântica, como a que ainda ocorre nos poemas lírico-existenciais, patenteando um outro momento criativo do poeta. As reflexões sobre a efemeridade e ação do tempo predominam, colocando em cena a insensatez da vida, que é de certa forma uma das características de todo poeta. A DANÇA DO TEMPO é exatamente um livro contra esta sensatez, este senso comum que aprisiona a palavra e o homem, por isso em Poema Corpo, é dito que palavras precisam ser libertárias, abrir comportas, derrubar paredes, derramar as histórias e desfazer os nós de cada um de nós.

A leitura destes poemas exige fôlego, tal a força de sua linguagem metafórica, através da qual há um pensar angustiado sobre o mundo em pleno movimento. Escrever evidencia-se vital para Naldo Velho, porque o poeta sabe que sua palavra é coisa viva, que tanto não se acomoda literariamente em formas pré-estabelecidas, quanto não se limita existencialmente a padrões de pensamentos. Neste livro não importa o som final de cada verso, uma vez que ele sempre rima com inquietude e libertação.


UMA CANÇÃO DESESPERADA
Ou
A POESIA DA SOLIDÃO E DA SOLIDARIEDADE

TANUSSI CARDOSO
Poeta e jornalista.
Presidente do Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro (SEERJ)

Nos primeiros versos de “Curriculum Vitae”, que abre seu mais recente livro, “A DANÇA DO TEMPO”, Naldo Velho já indica o que pretende: causar inquietude, dar a cara à tapa, mostrar-se sem subterfúgios, em versos quase sempre caudalosos: “Eu tenho mestrado em inquietude / com tese defendida nas esquinas desta vida, / pós-graduado em bares que funcionem / no intestino da cidade, / em vez por outra tropeçar e cair da merda do meio fio, / em dormir bêbado em recantos que sejam sombrios, / em buscar em meio aos escombros / versos que causem arrepio, (...).

Inquietude, nunca calmaria, que a isso não se permite o poeta. Seus poemas querem desnortear, mais que nortear; alvoroço invés de paz; libertar as amarras e não prender sensações. Porque o que se lerá nesse livro é pura emoção, não aquela gratuita, a de quem chora seus umbigos sem qualquer pudor, mas a que está sob a pele, a que dói no estômago como um soco, a que se encontra no mais íntimo de seus tremores e temores. Uma emoção que salta das entranhas e coloca-se de forma seca, enxuta, corroída em seus versos crus, numa dor que nos é universal. Naldo sabe o que é fazer poesia lírica e emotiva sem ser um charlatão das lágrimas construídas. Afinal, é o poeta quem afirma: “Portanto não peçam poemas mansos, / só sei caminhar aos trancos e barrancos.” (“Aos Trancos e Barrancos”), porque... “Do lado de cá mora um poeta, / águas revoltas, estranhas, inquietas.” (“Do Lado de Lá”)

“A DANÇA DO TEMPO” – e o Tempo fez muito bem ao escritor – traz uma voz contundente, sofrida e carismática. A impressão que se tem é de que, de maneira corajosa, Naldo Velho resolveu, definitivamente, exorcizar os seus fantasmas, num livro de extremo rigor estético, musical e poético, onde o mote principal são a espiritualidade e a crença – sempre possível – num homem ressurgido das trevas (o próprio poeta?), num Tempo Novo de Amor e de Energia Vital. Essa “Dança” do Tempo, para ele, é a reconstrução da própria Vida. Assim, a solidão (e é a solidão do homem moderno) passa a ser a palavra central, tecida nesse imenso livro de poemas, que tem o Tempo como motivação. 

Divergindo de uma literatura poética, que um segmento crítico resolveu aplaudir, em que a técnica e a frieza verbal não dão lugar ao emocional, onde o poeta esconde a sua persona em jogos semânticos, muitas vezes sem qualquer sentido, a poesia de Naldo Velho é exuberante, fazendo com que os sentimentos mais profundos jorrem diretamente ao coração do leitor, tocando-o com seus versos – o verdadeiro “religare” – sem desprezar a técnica e a forma, e sem se preocupar com modismos nem gratuidades tolas, não menosprezando a inteligência e a sensibilidade de quem o lê.

Naldo alcança o que tantos perseguem e nunca conseguem: um estilo próprio. Pois, em “A DANÇA DO TEMPO”, encontramos, com prazer, o estilo “naldovelho” de fazer poesia: um lirismo pontiagudo, perverso, cruel, erótico, sensual, extrovertido, e, ao mesmo tempo, e paradoxalmente, intimista, suave, musical, doce – apaixonado e apaixonante – comovente! Em seu novo livro, o poeta, em sua madureza, consegue timbres e dicções só seus, executados e pensados fluentemente. E, ao mesmo tempo em que se mostra se esconde, deixando ao leitor descobrir a sua face verdadeira entre as muitas antíteses de seu fazer poético.

De peito aberto, Naldo se entrega à Poesia - sangra. Chora as suas ausências e perdas, e não se intimida em ser tomado como um romântico nostálgico, alguém fora de hora e de ordem, com seus versos cheios de luas, musas e beijos apaixonados. O poeta parece estar sempre em transe poético, esvaindo-se numa pureza lírica, onde belas metáforas inibem a ironia, o humor e os rompantes juvenis de certa poesia lida por aí. Fabrício Carpinejar, a respeito de Mário Faustino, disse que ele “privilegiou a renovação do antigo mais do que a inovação pela ruptura”, pois o mesmo pode-se afirmar de Naldo Velho.

Porém, diferentemente do que se possa imaginar, Naldo não é um poeta que prima pelo bom comportamento. Seu texto é embalado por versos que fogem ao convencional, alimentado por palavras que se direcionam a certo padrão, digamos, gótico, de nosso paladar poético. Assim, sua poesia é cercada de vocábulos como entranhas, cicatrizes, amargura, insônia, inquietação, escombros, saudades, sombras, noites, feridas, lágrimas, solidão, medo, madrugadas, loucura etc., alternando em seus poemas símbolos religiosos ou místicos (peixes, serpentes, morte, sangue, mistérios, Deus, silêncio, anjos, segredos, veneno, alma...), conseguindo transformá-los em temas pessoais e atemporais, pois, como ele mesmo diz, “palavras precisam caminhar” (“Poema Corpo”). Entretanto, a religiosidade que aparece em alguns de seus versos é contrita, contida, uma espécie de oração nem tanto ao céu nem tanto à Terra. É uma oração que duvida, que pergunta, e que se responde na própria Poesia. Naldo Velho sabe muito bem equilibrar a estranheza de seus versos lúgubres, com técnica perfeita, onde o ritmo certeiro, a dose correta da emoção, a criatividade das metáforas, a força imagética contida na alta voltagem das palavras, tantas vezes, pictóricas e musicais, as inúmeras aliterações, assonâncias, numerações e demais jogos sonoros, indicam a qualidade do que é ser um poeta.  Quase todas as questões expostas em “A DANÇA DO TEMPO” transmitem uma grande agonia, um grande sofrimento, acentuadas pelo rico emprego das anáforas (impressionantemente presentes em quase todos os poemas do livro), afastando-se de sentimentalismos pueris, mas gratificantemente líricos, e ratificando a visão da grande angústia com que pensa o mundo.

Naldo Velho constrói em sua obra a poesia da vida e da liberdade: o Tempo da memória, o Tempo da saudade, o Tempo do que deixou de ser feito, o Tempo a ser vivido, o Tempo do Amor (angustiado, incompleto, desalentado, louco), o Tempo da infância, da velhice e da morte. Um ciclo inevitável, e, por isso mesmo, tão poético. O Tempo, para ele, é uma espécie de estigma. Há a urgência do querer fazer, do realizar, do realizar-se. Como se a Morte espreitasse em cada esquina, daí a necessidade irresistível e plena de utilizar o seu tempo em algo que lhe seja útil, “antes que o dia amanheça”, “antes que a fruta apodreça”, “antes que o meu tempo se acabe” (“E o Anjos Riem de Mim”).

O poeta torna-se um observador atento das coisas cotidianas: olhar perscrutador, ao mesmo tempo espantado, ao mesmo tempo carinhoso, repleto de dor e amor, filosofando sobre questões existenciais. Pergunta, indaga, mas, inteligentemente, em momento algum, é juiz dos acontecimentos. Seus poemas revelam consistência e grandeza humanas já que falam, basicamente, de experiências e aprendizagens de vida. Sem subterfúgios, sem pressa, labora e sente, já que para ele viver é o grande poema.  

Como numa “canção desesperada”, Naldo Velho, neste livro, se apresenta como um poeta triste, de alma atormentada, dilacerada, fragmentada (Não é à toa que a palavra “escombro” aparece em vários de seus versos). Um ser em busca de si mesmo, de sua identidade – de seu caminho – de sua verdade e de seu estar na vida. Um ser em busca do Tempo. Um Tempo que, através do poema, se revê e se projeta em algum futuro possível. Um Tempo que o poeta precisa “para terminar de viver”, para “libertar a pessoa que eu sempre quis ser” (“Há um Tempo”). Assim, com linguagem própria, Naldo Velho busca um sentido para as coisas do mundo, da vida - o elo perdido entre solidão e solidariedade.

Walter Benjamin viu na poesia uma modalidade específica de autoconhecimento. “A DANÇA DO TEMPO” confirma a teoria de que a boa Poesia é a arte da construção, do ver-se e do desnudar-se, numa busca perene e constante do encontrar-se a si mesmo.  “A DANÇA DO TEMPO” é o livro da procura e do encontro. Que o leitor acolha sua poesia com a mesma generosidade com que lhe é ofertada.


A DANÇA DO TEMPO PRIMEIRA PARTE

CURRICULUM VITAE
Naldo Velho

Tenho mestrado em inquietude
com tese defendida nas esquinas desta vida,
pós-graduado em bares que funcionem
no intestino da cidade,
em vez por outra tropeçar e cair da merda do meio-fio,
em dormir bêbado em recantos que sejam sombrios,
em buscar em meio aos escombros
versos que causem arrepio,
em  poeira de estrela colhida em noites desertas,
em colos que sejam molhados de orvalho,
em mulher enluarada que saiba sussurrar meu nome
e em ser viciado em veneno ardido da madrugada.

Tenho também doutorado em coisas mal resolvidas,
em caminhar aos tropeços pela beira do abismo,
em palavras fazedeiras espinhosas de umbigo,
em buscar significados que ninguém mais queira,
em cometer sacrilégios toda vez que eu penso,
em destruir muralhas que me impeçam o acesso,
em alongar horizontes quando ouso um sonho,
em desafiar o destino sempre que me proponho
em manter as janelas que eu tenho sempre abertas,
em cultivar em meu peito a palavra libertação.



TUDO O QUE EU SEMPRE QUIS
Naldo Velho

Dedicado a Elida, minha mulher e amiga,
companheira de tantos anos, a minha gratidão
pela paciência, pelo amor e pela compreensão.

Tudo o que eu sempre quis
foi sua perna invasora
debaixo de minhas cobertas,
e  sua mão transgressora
a acariciar meus cabelos,
e seus olhos verdes bordados,
ainda que deste jeito
assim desaforados.

Tudo o que eu sempre quis
foi envelhecer lentamente ao seu lado,
e depois de tantos e tantos anos
dizer: viveria tudo outra vez!
E hoje quando percebo em seu rosto
a serenidade de quem ainda se importa,
e vejo seus cabelos embranquecidos
pelo peso da maturidade,
digo cá com meu umbigo:
valeu a pena ter me apaixonado por você.



A DANÇA DO TEMPO
Naldo Velho

Na dança do tempo, o descompasso das horas,
ainda é noite aqui dentro, amanhece lá fora.
A porta entreaberta denuncia a loucura
o silêncio das coisas aumenta a clausura.

Na dança da vida, o descompasso do tempo,
calmaria aparente, tempestade aqui dentro.
E a insônia insistente não quer ir embora,
coração ainda sangra, vez por outra ainda chora.

Na dança dos versos, poemas que imploram,
nostalgia que eu temo, inquietudes que afloram,
Um sorriso aparente, um café, um cigarro,
uma dúzia de rosas ressecadas num jarro.

Na dança das águas, beija flor foi pra longe,
voou bem depressa, se escondeu não sei onde.
Agora chove lá fora, secura aqui dentro,
as notícias que guardo são antigas, faz tempo.

Já são quase dez horas e a cidade nublada,
manhã fria de agosto, respiração afrontada.
O poema que nasce não diz o que eu quero,
não sei se desisto, não sei se te espero.



AQUELA SENHORA
Naldo Velho

Aquela senhora bordava rosas
em alvos tecidos de puro linho,
e quando o fazia deixava os espinhos
e dizia a todos que a vida era assim.

E enquanto bordava embaraçava destinos,
sagrava escolhas, ainda que erradas,
e cantava um hino de amor e de dor.

Aquela senhora bordou o meu nome
em alvos tecidos manchados de sangue,
e disse pra todos que eu era um tolo,
um pobre poeta de asas quebradas,
beija-flor que gostava de caminhar entre escombros.

E quando escrevo ainda deixo os espinhos
e digo em meus versos que a vida é assim.



QUANDO O RIO DERRAMA
Naldo Velho

Há dias em que o rio derrama
e inunda todo o quarto.
Meu corpo encharcado
busca os teus braços, e reclama!
Diz que a solidão é coisa ardida,
abre na carne profundas feridas...
Sente saudades!
De um tempo de águas tranquilas,
quando a vida era apenas um riacho.



VERSOS PERPLEXOS
Naldo Velho

Palavras espremidas, descontentes,
vibram nervosas, reticentes...

A mesma mão que semeia o trigo,
contamina os rios e seus afluentes.
A mesma mão que acarinha o filho,
extermina as sementes da terra que chora.
A mesma mão que escreve poemas,
cava a trincheira que o protege agora.

Palavras tortas, expostas, contundentes
entoam cânticos de guerra evidente.
A mesma mão que cura as feridas
empunha a espada que sangra a vida.

Versos perplexos, reflexivos, confessos,
desentranham das vísceras o poema que implora.
A mesma mão que abre o caminho,
deixa neles rastros de sangue e desatino.

O que foi feito da cantiga de amor que outrora
trazia encantamento na voz do trovador?
O que foi feito do sorriso criança
que alimentava os sonhos do pensador?

O que foi feito do poeta e suas juras de amor?
Será que se calou pelo jugo do imperador?
Ou será que é sina do homem
crescer através da dor?



O HOMEM QUE OBSERVAVA O HORIZONTE
Naldo Velho

O homem que observava o horizonte
trazia consigo um sorriso,
meio assim sem juízo,
dizia ser apadrinhado dos ventos
e que ao amanhecer gostava
de caminhar pelas margens de um rio,
e de conversar com as águas que iam
desaguar nos intestinos da cidade.

O homem que observava o horizonte
cantava o canto dos pássaros,
que de tão assemelhado se dizia
que ele voava e ninguém via,
juravam até terem lhe visto as penas
que ao anoitecer brilhavam
quando a lua surgia do ventre
de um vale que por lá existia.

O homem que observava o horizonte,
quando a noite ia alta,
sossegava no canto de uma tapera
lá pras bandas da cidade velha,
e então cantava o canto dos loucos
que diziam morrer de saudades,
e ensinava a escrever poesia
as pedras que por lá existiam.
Cantos de amor e de dor.



PEDAÇOS
Naldo Velho

Certa feita, nas “fundezas” da noite
vi meu corpo sofrido no açoite,
e eram tantos os chicotes do tempo
que fatiavam o meu pensamento.

E vi no chão muitos restos, cascalhos,
poeira de pedra, projeto de ser.

Depois vi um rio de águas barrentas
levar pra bem longe todo o meu sofrimento.

Hoje, passado um tempo de espera,
lapidado nas águas e renascido das pedras;
quando olho no espelho ainda acho
que continuam faltando pedaços.



PASSO POEMA
Naldo Velho

Se eu fosse um passo, que passo seria?
Um passo em falso, ou um passo travesso?
Um passo esboço, ou um passo recomeço?
Quem sabe um passo firme em busca do meu apreço?

Passo apaixonado é ótimo!
Deveríamos chamá-lo de passo poema.

Pena que às vezes vire passo tropeço,
e depois: passo saudade, passo nostalgia,
passo atormentado por não ter mais meu apreço...

Passos românticos, pura poesia!
Sofredores líricos, incorrigíveis boêmios...

Cada passo um verso, cada verso um tropeço,
cada tropeço um poema, cada poema um recomeço.

Mas nunca um passo em falso, este sei que não mereço!



A FACE CONTRAÍDA DE DEUS.
Naldo Velho

Na estante, adormecido, o livro sagrado.
Em cima da mesa um outro aberto:
a Divina Comédia, o Inferno de Dante!
Palavras assustadoras de sombra e aflição;
demônios que ameaçam criar vida,
materializar de vez o mal que existe em nós.

Um terço abandonado na gaveta,
a oração, faz tempo, esquecida...

Anjos tristonhos observam o cenário;
estilhaços, escombros, vidas perdidas,
horas tão lentas, doloridas, grudentas
e um estranho deus que se alimenta de feridas.

Na casa semidestruída um cheiro ardido:
sangue, pólvora, poeira e medo!

Lá fora cães furiosos à espera:
há sempre alguém pronto para ser devorado.

Lágrimas ácidas, corrosivas...
O fanatismo de alguns, a dor de muitos.

Na estante o Novo Testamento.
Na parede, o Cristo crucificado, faz tempo...
E a face contraída de Deus
a assombrar meus pensamentos, ordena:
tirem Meu Filho da Cruz!



CASA SOMBRIA
Naldo Velho

Uma casa sombria, se bem me lembro...
Minha mãe chorava, mesa da sala,
revista Grande Hotel rasgada,
e eu não entendia...

Já faz muito tempo!
Mamãe foi embora, meu pai foi antes...
E quando foi já não rasgava revistas,
era um homem triste e não sabia,
era um homem distante e não entendia.

Às vezes eu ainda sonho:
casa sombria, quintal mal cuidado,
porta da sala encostada,
e a do quarto trancada.

Em meu sonho eles ainda moram lá!
Minha mãe na mesa da sala,
revista Grande Hotel aberta,
fotonovela, romance...

Meu pai no bar da esquina...
Ele ainda é um homem distante,
ainda não entende a poesia.