PRIMAVERA ANSIOSA
Naldo Velho
Silencioso e friorento,
nasce o dia em meu quarto
e com ele um céu de preguiça
povoado por nuvens esparsas.
Umidade relativa do ar
muito maior do que se pensa!
Pela janela um vento macio
acaricia o mês de setembro
e num café quente e encorpado
amanheço atrasado nas horas.
E a cidade orvalhada lá fora
alimenta o poema que eu tento.
Sinfonia de fim de inverno
em harmonias repletas de sonhos
que pássaros precursores revelam.
Primavera nos acena ansiosa,
e do horizonte orgulhosa exclama:
não morrerá a luz dos seus olhos!
AO ESCREVER POEMAS
Naldo Velho
Tenho a mão pesada ao escrever
poemas,
abro, no papel, profundos sulcos,
tipo, leito de um rio, por onde
navegam
palavras, pensamentos, histórias,
coisas colhidas nas trilhas desta
vida.
Não acaricio as palavras,
espremo-as,
até ter delas seu sumo, seus
significados.
Uso cores agressivas, por vezes
exuberantes,
quando tento passar uma mensagem.
Quando falo de saudade prefiro o
cinza,
nostalgia navega em branco e
preto
e a revolta em águas barrentas,
sempre!
Estou mais para a realidade,
a vida me fez assim!
Tenho a mão pesada aos escrever
poemas,
machuco o papel, até perceber que
ali existe
sangue, suor, saliva, sentimento.
Não sei escrever sem expor feridas.
Parir versos é remexer nas
entranhas,
é cutucar cicatrizes, fazê-las
ardidas,
só assim o poema sobrevive
e eu consigo exorcizar minha dor.
NUANCES
Naldo Velho
E tem esta consistência pedra
lapidada pela força das águas,
corredeiras de um rio que nasce
antes do que a vista alcança
e do que se possa imaginar.
E tem esta aspereza casca
de árvore que percebo tombada
e pelo tempo, assim, petrificada,
na beira de um rio que um dia
eu sonho navegar.
E tem esta umidade limo
que brota das ranhuras das pedras
e em torno delas surgem fungos,
pequenos organismos estranhos,
vida que costumo observar.
Mas tem também esta delicadeza
asas
de pássaros em animada conversa,
algazarra de cores e cantos,
e o rio que passa alimenta
a poesia que tenho pra
mostrar.
E finalmente esta sutileza pétala
de brisa suave a emoldurar a
tarde,
de águas macias de beira de um
rio,
de carinho esperado da mulher
sedenta
do amor que um dia eu vou saber
ofertar
ARMÁRIOS NÃO DEVERIAM TER PORTAS
Naldo Velho
Armários não deveriam ter portas!
Ficaríamos muito mais arejados,
nossos guardados livres das
sombras,
da umidade sufocante e do mofo,
e nossos pecados poderiam
florescer impunemente.
Armários não deveriam ter portas!
Que escondessem cicatrizes e
medos,
cadáveres desossados, segredos,
adagas ainda sujas de sangue,
e o nosso passado poderia
então circular impunemente
Armários não deveriam ter portas,
fundos falsos, gavetas trancadas
a sete chaves, tamanhas mentiras,
inquietudes, ansiedade, loucura,
coisas que na realidade não nos
pertencem
e só servem para nublar o
presente,
e fazer do futuro uma obra de
ficção.
HÁ UM TEMPO
Naldo Velho
Há um tempo vazio em meus
pensamentos,
securas de sonhos, lacunas
estranhas,
estiagem de versos, de lágrimas,
de gestos.
Há um tempo nublado, fim de tarde
outono,
vento frio que varre, prenúncio
de inverno,
chuva fina que chega e embaça a
vidraça.
Há um tempo de insônia, madrugada
inquieta,
luz do quarto acesa, rua deserta,
tristeza,
é a palavra verdade que renasce
entre escombros.
Há um tempo de dor ao rever os
meus passos,
deixei por lá muitos rastros,
vestígios, escolhas,
muitas delas erradas,
indelicadezas!
Há um tempo eu penso que ainda
existe algum tempo
para limpar meus armários,
exorcizar meus demônios,
abrir as janelas, dar um jeito em
meu quarto.
Há um tempo que eu tenho para
achar as respostas,
descobrir sobre as chaves que
abram as portas,
libertar a pessoa que eu sempre
quis ser.
Há um tempo que eu quero dizer
que Te amo,
pode ser que eu possa resgatar os
meus sonhos,
pode ser que eu chore aconchegado
em Teus braços.
Há um tempo que eu preciso para
terminar de viver.
POEMA ANACRÔNICO
Naldo Velho
Há uma subserviência secular
nas dobradiças de uma porta
que sempre se dobram
quando alguém deseja passar.
Ainda bem que existe a fechadura
que sabiamente exige
que se tenha a chave certa.
Pena que exista sempre aquele
que pensa que pode forçar
passagem,
ainda que ali não seja o seu
lugar.
Há uma rebeldia perversa
no vento que me invade a tarde
e traz maresia da orla,
e faz despertar a saudade.
Ainda bem que existe o poema
que sabiamente enxuga
as lágrimas que eu choro agora.
Pena que exista sempre um
vestígio
que tenta se alojar à vontade,
ainda que não seja a hora nem o
lugar.
Há um quê de transgressão
nas coisas que eu já não ouso
sonhar!
HEI DE MORRER JOVEM
Naldo Velho
Hei de morrer jovem,
na flor dos nem sei quanto anos,
com as costas arqueadas
pelo peso de uma vida,
e as pernas enfraquecidas
por trilhas, atalhos, estradas.
Hei de morrer jovem,
na flor dos meus desenganos,
com os olhos, assim, embaçados
por conta do quanto enxerguei
e a pele toda enrugada
pelo muito que semeei.
Hei de morrer certamente,
ainda que permaneçam os espinhos,
pois embora não te pareça,
jovem ainda estarei!
Pois esta foi minha escolha,
meu rito sagrado, minha lei.
Hei de morrer qualquer dia,
antes que seja tarde!
Mas só quando acabarem os poemas,
e tomara Deus que docemente!
Pois por mais que eu tenha
pecado,
Ele sabe o quanto eu amei.
PALAVRAS OCIOSAS
Naldo Velho
Na parede da sala
um menino pastoreia um bando de
ovelhas,
ao lado, águas claras de um rio
que margeiam uma cidade.
No parapeito da janela
um pequeno grupo de pássaros
a comentar as notícias de ontem;
aquelas que ainda nem tive tempo
de ler.
Em cima da mesa, num jarro de
flores,
pencas de monsenhor branco.
Protegida sob o teto, lado
esquerdo, lá no canto,
uma aranha constrói sua teia.
Manhã de domingo, de sol inteiro
lá fora,
e um cheiro de café bem forte
toma conta do ambiente...
Em cima da mesa, ao lado das
flores,
numa folha de papel preguiçosa,
palavras ociosas buscam um
entendimento.
Estranho!
Quando comecei esta prosa
tinha algo importante a dizer,
só não lembro mais o quê!
POEMA CORPO
Naldo Velho
Vontade de escrever um poema
corpo,
um que tivesse duas pernas
que pudessem encurtar distâncias,
dobrar esquinas, explorar
atalhos,
pois ainda que vez por outra se
percam
palavras precisam caminhar.
E que tivesse também muitos
braços...
Palavras abraçadas ecoam,
fazem luzir seus significados,
são tessituras que julgo mágicas
sobre algo que é preciso expor.
Vontade de escrever um poema
corpo,
um que tivesse vários olhos
que brilhassem no meio da
escuridão,
que iluminassem o caminho das
pessoas
pois ainda que confusas as
trilhas desta vida,
palavras precisam enxergar por
entre escombros.
E que tivesse também um coração
transgressor...
Palavras precisam ser
libertárias,
abrir comportas, derrubar
paredes,
derramar as histórias e desfazer
os nós
de cada um de nós.
Vontade de escrever um poema
corpo...
VERSO ESMIRRADINHO
Naldo Velho
Ando sofrendo de verso
“esmirradinho”,
feito lua minguante, maré vazante
na areia,
instante aprisionado entre a
noite e o dia,
vontade de não dizer nada,
colocar o pé na estrada
e sem adeus viajar pra dentro de
mim.
Ando sofrendo das inutilidades
e qualquer coisa que se diga
carece de importância,
sensação de vazio, gastura,
clausura, estio,
vontade de ficar embrulhado nesta
teia de aranha,
até que o veneno inoculado possa
dar um fim em mim.
Ando sofrendo de poema morto,
palavras veladas sobre a pedra
fria,
velas acesas, lágrimas, muita
oração,
e o poeta precisando de cuidados,
parto encruado, prisão de ventre,
constipação.
COMEÇAR TUDO OUTRA VEZ
Naldo Velho
Vento que venta apressado
e revira meus guardados
em busca de evidências
que possam revelar a origem
do estrago que causou os
escombros
que vivem de entulhar meus
caminhos...
Diz se você viu o poema que eu
tento
escondido por aí!
Aproveita e remove a poeira
que impede que os significados
brilhem ao serem tocados,
pois as palavras
que carinhosamente eu guardo
anseiam por derramamentos
e do jeito que andam embaçadas,
ninguém vai conseguir entender.
Vento que venta apressado,
afasta de vez a estiagem
que tanto sufoca o poeta
embaraçado num monte de teias
que o tempo armou para mim,
e mostra que o poeta é um louco
mestre dos descaminhos,
capaz de muitos enganos,
mas tolo o suficiente
para começar tudo outra vez.
VERSOS ETÍLICOS
Naldo Velho
Palavras trôpegas, embriagadas,
espalhadas pelo chão do quarto,
vomitam no tapete, mijam no pé da
cama,
gritam significados e estragos,
insistem em construir poemas,
versos etílicos, desconexos,
mistos de dor, loucura e
valentia,
cismam em revelar segredos,
riem debochadamente dos meus
medos,
desobedecem regras e rimas,
desafiam o tempo do verbo,
e choram a falta da mulher amada,
e a nostalgia colhida nas
madrugadas,
na solidão que sobrevive às
horas,
alcoólatras confessos que somos
viciados em falar do abandono.
Nenhum comentário:
Postar um comentário