CADA VEZ QUE ENTARDEÇO
Naldo Velho
O silêncio das almas, a espera
inquietante,
o livro aberto em cima da mesa,
feridas cicatrizadas e um monte
de incertezas.
As marcas do tempo, a rota dos
ventos,
a cada passo colho pedras e
espinhos,
dias e noites ao relento,
a face enrugada já não me deixa
mentir.
Um rio de águas claras atravessa
meu quintal,
e do lado de lá, margem contrária
de quem sofre,
um tempo, que eu pressinto, de
delicadeza.
Cada vez que eu entardeço,
atravesso um pouco mais.
DEUSES ERRADOS
Naldo Velho
Em cima da mesa o livro sagrado,
ao lado: um punhal sujo de
sangue.
Na parede em frente um crucifixo,
no corpo: marcas, cicatrizes.
Algumas feridas, ainda incomodam,
vez por outra, inflamam, doem.
No armário: vestes, armaduras.
Nos sonhos: caminhos estranhos,
peregrinação.
Nos jornais: notícias de uma
terra distante,
conflitos, morte, destruição.
Na boca: um gosto amargo de
sangue.
Nos olhos: inquietude, medo,
aflição.
Ligo a televisão e percebo o
engano:
nem faz muito tempo, trilhei
caminhos profanos,
violei templos sagrados, cultuei
deuses errados;
nem faz muito tempo, martirizei
meu corpo,
colhi espinhos, abismos, solidão.
Abro a janela e respiro o ar da
madrugada.
Ao longe: o som estridente de uma
sirene...
Bem perto: uma rajada seca de
balas.
E a cidade sufocada por conta de
tanta omissão,
prisioneira dos seus erros,
sitiada pela incompreensão.
Na estante um livro de poemas.
Muito pouca gente leu!
Na escrivaninha um outro
inacabado.
Em minha boca permanece o gosto
de sangue
e as pessoas não percebem que a
hora é esta,
como eu, continuam a cultuar
deuses errados.
ANJO INOCENTE
Naldo Velho
Anjo ferido na beira do abismo,
não sabe que o colo que aquece
padece,
não sabe a criança de olhar
inocente
que a mão que semeia também sabe
ferir.
Não sabe da farpa, da fuga e da
fúria,
não sabe da faca, do corte e do
sangue,
mas sente a dor da sede e da
fome,
ressecadas as lágrimas, nem sabe
sorrir.
Anjo inocente na beira do abismo
não sabe seu nome, nem seu sobrenome,
olhar embaçado, desesperançado,
não sabe das águas, do trigo e
dos sonhos,
teu tempo é escasso, logo-logo
partir.
Armei um presépio lá em casa este
ano,
o Cristo era negro e morria de
fome,
na mesa tua carne, nos copos teu
sangue,
nas ruas do mundo a inconsciência
do homem;
transpassados os cravos,
dilaceram-te as mãos.
Por mais que eu tente não consigo
sorrir.
TUDO TEM SEU TEMPO CERTO
Naldo velho
Por conta de algumas tessituras
precisei exercitar esperas,
dar tempo ao tempo que eu tenho,
pois apesar de melodiosas,
as harmonias que eu teço
precisam respirar.
Por conta desta espera
precisei preencher vazios,
caminhar em silêncio
entre a calçada e o meio-fio,
perceber o pulsar do dia que
existe
entre o ontem e o amanhã.
Por conta destas coisas
precisei me desdobrar em dois.
Um com o coração traspassado
por nostalgias e estragos.
Outro com a mente envolta em
sonhos;
vontade de percorrer caminhos.
Por conta destes caminhos
precisei exercitar significados,
lançar mão da bagagem que eu
trago
e nada pôde ser desprezado,
tudo tem seu tempo certo,
ainda que eu só o perceba depois.
MANIAS
Naldo Velho
Mania de janela escancarada,
qualquer vento que chegue,
até os vadios invadem, vasculham
cômodos,
espalham pelo chão coisas faz
tempo guardadas,
verdades que o poeta se ilude em
esconder.
Mania de cometer sacrilégios,
de andar pela beira do abismo,
de cutucar feridas antigas,
de viver fuçando escombros,
de não permitir que a loucura se
esconda...
Sangue, suor, tabaco e
aguardente.
Mania de madrugadas insones,
de perambular por ruas desertas,
por travessas, por becos,
esquinas,
de tecer teias lúdicas,
e de colher a palavra que existe
nos recantos mais sombrios da
cidade.
Mania de querer ser poeta,
de dissolver espinhos, farpas e
cacos,
de fazer do veneno um remédio,
de macerar energias que imploram
por significados que transcendam
o poema,
que façam sentido hoje, amanhã e
depois.
MEU SONHO
Naldo velho
E o meu sonho disse que era um
rio,
que passado um tempo seria mar,
que lá nos distantes subiria aos
céus,
viveria nuvem, cairia chuva,
fecundaria a terra, renasceria
trigo,
alimentaria o homem que não quis
ver o sonho
e, cansado desta lida,
descansaria pedra à luz do luar.
E o meu sonho disse que era um
poeta,
que acordado da pedra sofreria
homem,
e teria filhos contaminados de
trigo,
que de porta em porta,
ofereceriam sonhos,
que passado um tempo seriam
essência,
e que a cruz que levava nos
pertencia,
por conta daqueles que não
ousaram sonhar.
E o meu sonho disse que era um
caminho,
que passado um tempo subiria
montanhas,
exploraria cavernas, passagens,
abismos,
revelaria fontes, impulsionaria
rios
que moveriam moinhos, da semente
ao trigo,
revelado o mistério do ciclo das
águas,
alimentaria o homem, ensinando-o
a sonhar.
A MULHER QUE REZAVA EM SEU TERÇO
Naldo Velho
A mulher que rezava em seu terço,
pedia benesses que eu nem sei se
mereço.
Depois de algum tempo Deus
respondia,
que cada pedaço de pão teria seu
preço,
e que a paga mais justa era o
amor que existia.
Ainda assim a mulher rezava em
seu terço
e prometia oferendas,
penitências, desvelo,
e pedia ao Pai um lugar ao seu
lado.
Depois de alguns dias o Céu
respondia,
que para cada degrau haveria um
tropeço,
e que continuar no caminho já era
um começo.
E assim a mulher guardou o seu
terço,
abriu a janela, andou pelas ruas,
percebeu dores que não eram as
suas.
Depois de algum tempo estendeu
suas mãos,
amparou quem havia desabado em
tropeços,
e aprendeu finalmente a caminhar
entre escombros.
E então a mulher lembrou do seu
terço
e agradeceu ao Pai por viver dia
a dia,
e a cada dia um tropeço,
e a cada tropeço um novo começo.
DIA NUBLADO
Naldo Velho
Dia nublado, manhã chuvosa,
janelas abertas pro desassossego.
As ruas desertas, o mês é
dezembro,
o telefone não toca, escrevo uma
carta,
é quase um poema, é quase um
lamento.
A maresia da orla invade o meu
quarto,
o som de uma música, o dedilhar
de um piano,
lembram tantos planos e os meus
desenganos.
A campainha da porta estridente
que toca,
é só o porteiro trazendo
cobranças,
é só o desterro nesta cidade
nublada.
Teu nome é distância, que às
vezes sufoca,
teu nome é ausência, não sei se
te importa?
Ainda te amo, não sei se te
quero,
não sei se te espero ou me
desespero,
teu nome é demora que não vai
embora.
Tomar um café, fumar um cigarro.
Ligo o rádio e o que presta não
toca,
Ainda bem que não toca, se não eu
choro!
Melhor ir embora, melhor
esquecer,
procurar outro lugar onde eu
possa viver,
pois neste ambiente persiste o
teu cheiro.
E o dia prossegue, e a chuva
insistente,
continuo um descrente, um poeta,
um tolo
que se alimenta de versos,
cantigas, memórias;
que não percebe que o sol já se
pôs,
vida que segue e eu não consigo
te esquecer.
POETAS QUE VIVEM NO LIMBO
Naldo Velho
E ele vivia pelas ruas catando
sobras,
recolhendo restos, cacos,
coisas por descuido esquecidas,
ou desprezadas pela pressa,
e amontoava tudo num canto.
Algumas ele utilizava,
outras repassava...
E assim ele tocava nossas vidas,
misturado ao que para os outros
não prestava
e a buscar significado nos
escombros,
na tentativa de pôr ordem nos
estragos.
Diziam que se alimentava de
entulho
e que era o rei das inutilidades.
Outro dia num beco escuro
encontrou uma caixa cheia de
livros,
entre eles: alguns romances,
coisa antiga em desuso;
e um, em especial, de poemas.
O título: poetas que vivem no
limbo.
E orgulhosamente na capa,
fez questão de escrever seu nome.
PALAVRA ESPINHOSA DE UMBIGO
Naldo Velho
Palavra espinhosa de umbigo
é esta tal de nostalgia,
vive de contaminar meus versos,
encharca de orvalho poemas
inteiros,
e ainda traz consigo, cheiro de
terra molhada
em tardes chuvosas de inverno,
dedilhar no piano um bolero,
veneno de lua cheia, canto ardido
de sereia,
noites inteiras passadas em
claro,
vontade de fumar um cigarro,
ou de tomar um bom gole de
aguardente,
e ainda tem gente que diz que não
teme
palavras que arranham e choram.
Palavra mais estranha
é esta tal de nostalgia,
vive de ressuscitar o passado,
mantém nos guardados, lembranças,
estragos,
retratos amarelados, cartas,
bilhetes,
lágrimas indecisas que dos olhos
não rolam,
um certo perfume que ainda mora
em meus dedos,
já fiz tudo pra me livrar, mas
ele teima em assombrar,
e ainda tem gente que diz que não
teme
cicatriz que volta e meia
incomoda
e na mudança de tempo costuma
sangrar.
MEDO DO ESCURO
Naldo velho
Por favor, não se vá!
Espere que eu adormeça.
Tenho tanto medo do escuro
e se bem me lembro,
atrás das cortinas
existem fantasmas.
Conte-me uma história!
cante uma cantiga,
fale um poema...
Diga das coisas que eu gosto,
acarinhe o meu cabelo,
e espere...
Depois que eu dormir,
você pode partir.
Mas volte...
Todos as noites à mesma hora,
até que crescido eu possa
perguntar:
como fui esquecer de você?
DO LADO DE LÁ
Naldo Velho
Do lado de lá existe um rio de
águas claras:
na margem esquerda um moinho,
muito sonho, muito milho, muito
trigo;
na margem direita um povoado,
gente calejada na lida e no sol,
que alonga olhos de perceber
horizonte,
que estende braços de alcançar o
distante,
e conhece o sentido das fases de
um rio,
e o mistério das águas, seus
ciclos, destinos.
Do lado de lá existe um templo,
que de portas abertas acolhe
crianças,
que no altar brincam de tecer
esperanças,
que arteiras misturam enredos,
caminhos,
para que com o tempo,
desembaraçados os fios,
poderem, sorridentes, misturar
tudo outra vez.
Do lado de cá mora um poeta,
águas revoltas, estranhas,
inquietas.
Do lado esquerdo um coração já
cansado,
sonhos truncados, versos
coagulados.
Do lado direito cicatrizes,
tatuagem,
um olho que enxerga além da
neblina,
e a mão que semeia poemas que
falam
de perceber horizontes, alcançar
o distante...
Um dia ainda viro água e vou
chover do outro lado,
renasço como trigo e alimento as
crianças,
vou ser fio trançado no tecido
esperança;
não consigo imaginar razão melhor
para viver.
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