segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A DANÇA DO TEMPO NONA PARTE

CADA VEZ QUE ENTARDEÇO
Naldo Velho

O silêncio das almas, a espera inquietante,
o livro aberto em cima da mesa,
feridas cicatrizadas e um monte de incertezas.

As marcas do tempo, a rota dos ventos,
a cada passo colho pedras e espinhos,
dias e noites ao relento,
a face enrugada já não me deixa mentir.

Um rio de águas claras atravessa meu quintal,
e do lado de lá, margem contrária de quem sofre,
um tempo, que eu pressinto, de delicadeza.

Cada vez que eu entardeço, atravesso um pouco mais.



DEUSES ERRADOS
Naldo Velho

Em cima da mesa o livro sagrado,
ao lado: um punhal sujo de sangue.
Na parede em frente um crucifixo,
no corpo: marcas, cicatrizes.
Algumas feridas, ainda incomodam,
vez por outra, inflamam, doem.
No armário: vestes, armaduras.
Nos sonhos: caminhos estranhos, peregrinação.
Nos jornais: notícias de uma terra distante,
conflitos, morte, destruição.
Na boca: um gosto amargo de sangue.
Nos olhos: inquietude, medo, aflição.
Ligo a televisão e percebo o engano:
nem faz muito tempo, trilhei caminhos profanos,
violei templos sagrados, cultuei deuses errados;
nem faz muito tempo, martirizei meu corpo,
colhi espinhos, abismos, solidão.
Abro a janela e respiro o ar da madrugada.
Ao longe: o som estridente de uma sirene...
Bem perto: uma rajada seca de balas.
E a cidade sufocada por conta de tanta omissão,
prisioneira dos seus erros, sitiada pela incompreensão.
Na estante um livro de poemas.
Muito pouca gente leu!
Na escrivaninha um outro inacabado.
Em minha boca permanece o gosto de sangue
e as pessoas não percebem que a hora é esta,
como eu, continuam a cultuar deuses errados.



ANJO INOCENTE
Naldo Velho

Anjo ferido na beira do abismo,
não sabe que o colo que aquece padece,
não sabe a criança de olhar inocente
que a mão que semeia também sabe ferir.
Não sabe da farpa, da fuga e da fúria,
não sabe da faca, do corte e do sangue,
mas sente a dor da sede e da fome,
ressecadas as lágrimas, nem sabe sorrir.

Anjo inocente na beira do abismo
não sabe seu nome, nem seu sobrenome,
olhar embaçado, desesperançado,
não sabe das águas, do trigo e dos sonhos,
teu tempo é escasso, logo-logo partir.

Armei um presépio lá em casa este ano,
o Cristo era negro e morria de fome,
na mesa tua carne, nos copos teu sangue,
nas ruas do mundo a inconsciência do homem;
transpassados os cravos, dilaceram-te as mãos.
Por mais que eu tente não consigo sorrir.



TUDO TEM SEU TEMPO CERTO
Naldo velho

Por conta de algumas tessituras
precisei exercitar esperas,
dar tempo ao tempo que eu tenho,
pois apesar de melodiosas,
as harmonias que eu teço
precisam respirar.

Por conta desta espera
precisei preencher vazios,
caminhar em silêncio
entre a calçada e o meio-fio,
perceber o pulsar do dia que existe
entre o ontem e o amanhã.

Por conta destas coisas
precisei me desdobrar em dois.
Um com o coração traspassado
por nostalgias e estragos.
Outro com a mente envolta em sonhos;
vontade de percorrer caminhos.

Por conta destes caminhos
precisei exercitar significados,
lançar mão da bagagem que eu trago
e nada pôde ser desprezado,
tudo tem seu tempo certo,
ainda que eu só o perceba depois.



MANIAS
Naldo Velho

Mania de janela escancarada,
qualquer vento que chegue,
até os vadios invadem, vasculham cômodos,
espalham pelo chão coisas faz tempo guardadas,
verdades que o poeta se ilude em esconder.

Mania de cometer sacrilégios,
de andar pela beira do abismo,
de cutucar feridas antigas,
de viver fuçando escombros,
de não permitir que a loucura se esconda...
Sangue, suor, tabaco e aguardente.

Mania de madrugadas insones,
de perambular por ruas desertas,
por travessas, por becos, esquinas,
de tecer teias lúdicas,
e de colher a palavra que existe
nos recantos mais sombrios da cidade.

Mania de querer ser poeta,
de dissolver espinhos, farpas e cacos,
de fazer do veneno um remédio,
de macerar energias que imploram
por significados que transcendam o poema,
que façam sentido hoje, amanhã e depois.



MEU SONHO
Naldo velho

E o meu sonho disse que era um rio,
que passado um tempo seria mar,
que lá nos distantes subiria aos céus,
viveria nuvem, cairia chuva,
fecundaria a terra, renasceria trigo,
alimentaria o homem que não quis ver o sonho
e, cansado desta lida, descansaria pedra à luz do luar.

E o meu sonho disse que era um poeta,
que acordado da pedra sofreria homem,
e teria filhos contaminados de trigo,
que de porta em porta, ofereceriam sonhos,
que passado um tempo seriam essência,
e que a cruz que levava nos pertencia,
por conta daqueles que não ousaram sonhar.

E o meu sonho disse que era um caminho,
que passado um tempo subiria montanhas,
exploraria cavernas, passagens, abismos,
revelaria fontes, impulsionaria rios
que moveriam moinhos, da semente ao trigo,
revelado o mistério do ciclo das águas,
alimentaria o homem, ensinando-o a sonhar.



A MULHER QUE REZAVA EM SEU TERÇO
Naldo Velho

A mulher que rezava em seu terço,
pedia benesses que eu nem sei se mereço.
Depois de algum tempo Deus respondia,
que cada pedaço de pão teria seu preço,
e que a paga mais justa era o amor que existia.

Ainda assim a mulher rezava em seu terço
e prometia oferendas, penitências, desvelo,
e pedia ao Pai um lugar ao seu lado.
Depois de alguns dias o Céu respondia,
que para cada degrau haveria um tropeço,
e que continuar no caminho já era um começo.

E assim a mulher guardou o seu terço,
abriu a janela, andou pelas ruas,
percebeu dores que não eram as suas.
Depois de algum tempo estendeu suas mãos,
amparou quem havia desabado em tropeços,
e aprendeu finalmente a caminhar entre escombros.

E então a mulher lembrou do seu terço
e agradeceu ao Pai por viver dia a dia,
e a cada dia um tropeço,
e a cada tropeço um novo começo.



DIA NUBLADO
Naldo Velho

Dia nublado, manhã chuvosa,
janelas abertas pro desassossego.
As ruas desertas, o mês é dezembro,
o telefone não toca, escrevo uma carta,
é quase um poema, é quase um lamento.
A maresia da orla invade o meu quarto,
o som de uma música, o dedilhar de um piano,
lembram tantos planos e os meus desenganos.
A campainha da porta estridente que toca,
é só o porteiro trazendo cobranças,
é só o desterro nesta cidade nublada.
Teu nome é distância, que às vezes sufoca,
teu nome é ausência, não sei se te importa? 
Ainda te amo, não sei se te quero,
não sei se te espero ou me desespero,
teu nome é demora que não vai embora.
Tomar um café, fumar um cigarro.
Ligo o rádio e o que presta não toca,
Ainda bem que não toca, se não eu choro! 
Melhor ir embora, melhor esquecer,
procurar outro lugar onde eu possa viver,
pois neste ambiente persiste o teu cheiro.
E o dia prossegue, e a chuva insistente,
continuo um descrente, um poeta, um tolo
que se alimenta de versos, cantigas, memórias;
que não percebe que o sol já se pôs,
vida que segue e eu não consigo te esquecer.



POETAS QUE VIVEM NO LIMBO
Naldo Velho

E ele vivia pelas ruas catando sobras,
recolhendo restos, cacos,
coisas por descuido esquecidas,
ou desprezadas pela pressa,
e amontoava tudo num canto.
Algumas ele utilizava,
outras repassava...
E assim ele tocava nossas vidas,
misturado ao que para os outros não prestava
e a buscar significado nos escombros,
na tentativa de pôr ordem nos estragos.
Diziam que se alimentava de entulho
e que era o rei das inutilidades.
Outro dia num beco escuro
encontrou uma caixa cheia de livros,
entre eles: alguns romances,
coisa antiga em desuso;
e um, em especial, de poemas.
O título: poetas que vivem no limbo.
E orgulhosamente na capa,
fez questão de escrever seu nome.



PALAVRA ESPINHOSA DE UMBIGO
Naldo Velho

Palavra espinhosa de umbigo
é esta tal de nostalgia,
vive de contaminar meus versos,
encharca de orvalho poemas inteiros,
e ainda traz consigo, cheiro de terra molhada
em tardes chuvosas de inverno,
dedilhar no piano um bolero,
veneno de lua cheia, canto ardido de sereia,
noites inteiras passadas em claro,
vontade de fumar um cigarro,
ou de tomar um bom gole de aguardente,
e ainda tem gente que diz que não teme
palavras que arranham e choram.

Palavra mais estranha
é esta tal de nostalgia,
vive de ressuscitar o passado,
mantém nos guardados, lembranças, estragos,
retratos amarelados, cartas, bilhetes,
lágrimas indecisas que dos olhos não rolam,
um certo perfume que ainda mora em meus dedos,
já fiz tudo pra me livrar, mas ele teima em assombrar,
e ainda tem gente que diz que não teme
cicatriz que volta e meia incomoda
e na mudança de tempo costuma sangrar.



MEDO DO ESCURO
Naldo velho

Por favor, não se vá!
Espere que eu adormeça.
Tenho tanto medo do escuro
e se bem me lembro,
atrás das cortinas
existem fantasmas.
Conte-me uma história!
cante uma cantiga,
fale um poema...
Diga das coisas que eu gosto,
acarinhe o meu cabelo,
e espere...
Depois que eu dormir,
você pode partir.
Mas volte...
Todos as noites à mesma hora,
até que crescido eu possa perguntar:
como fui esquecer de você?



DO LADO DE LÁ
Naldo Velho

Do lado de lá existe um rio de águas claras:
na margem esquerda um moinho,
muito sonho, muito milho, muito trigo;
na margem direita um povoado,
gente calejada na lida e no sol,
que alonga olhos de perceber horizonte,
que estende braços de alcançar o distante,
e conhece o sentido das fases de um rio,
e o mistério das águas, seus ciclos, destinos.

Do lado de lá existe um templo,
que de portas abertas acolhe crianças,
que no altar brincam de tecer esperanças,
que arteiras misturam enredos, caminhos,
para que com o tempo, desembaraçados os fios,
poderem, sorridentes, misturar tudo outra vez.

Do lado de cá mora um poeta,
águas revoltas, estranhas, inquietas.
Do lado esquerdo um coração já cansado,
sonhos truncados, versos coagulados.
Do lado direito cicatrizes, tatuagem,
um olho que enxerga além da neblina,
e a mão que semeia poemas que falam
de perceber horizontes, alcançar o distante...

Um dia ainda viro água e vou chover do outro lado,
renasço como trigo e alimento as crianças,
vou ser fio trançado no tecido esperança;
não consigo imaginar razão melhor para viver.

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